Acredite, não é pouca coisa, considerando que neste mesmo ano tivemos a estreia do estelar Vingadores: Ultimato. Permeado de certezas e muitas dúvidas, a reação do público e crítica não poderia ser diferente. Coringa é o retrato de seu tempo e o vilão de 2019, assim como seus antecessores, é também controverso, mas vai além, é quebrado e complexo. É, no mínimo, interessante assistir à discussão acerca do filme de “Nós realmente precisamos de outra história do Coringa logo após o Esquadrão Suicida?” para “O Coringa está cheio de idéias perigosas que estimularão seus piores fãs a matar?”. As preocupações iniciais em torno do longa assumiu que o filme seria desnecessário e, seu impacto, insignificante. As perguntas atuais atribuem-no já com muita importância, como se o mesmo pudesse incitar um estado de anarquia apenas existindo. Como sempre, em um caso em que as pessoas saltam para extremos, a verdade está em algum lugar no meio. Há sim algumas mensagens feias e egoístas no filme, que são incongruentemente empenhadas em criar simpatia pelo pior inimigo de Batman e um dos mais notoriamente insensíveis assassinos em massa da DC Comics. Mas ame ou odeie, o filme cria uma fantasia tentadora de perseguição e alívio, de abraçar o niilismo como um meio de escapar completamente de um mundo terrível. O golpe de mestre fica quando você se vê incapaz de se simpatizar com ele e, fatalmente, vê um pouco de si mesmo. Existe uma frase de Harold Pinter, dramaturgo e vencedor do Prêmio Nobel, que sintetiza bem toda a experiência pós-Coringa: “(…) às vezes o escritor tem de quebrar o espelho — porque é do outro lado do espelho que a verdade nos encara.” Coringa é isso, o ato de quebra do espelho. É uma fantasia de autocomiseração, certamente.

Risada abafada pelo descaso

Todd Phillips traça Gotham com uma certeza microscópica, retratando-a tal qual ela é: um lugar sombrio e despreocupado, um carnaval quase comicamente vil, onde o protagonista não consegue encontrar uma pitada de conforto ou alívio. Em uma performance completamente imersa, Joaquin Phoenix interpreta Arthur Fleck, um palhaço fracassado trabalhando para uma agência de talentos decadente. Doente, frequentando torturantes sessões de terapia a mando do tribunal e lidando com uma carga forte de remédios no dia a dia, não há ninguém na vida de Fleck capaz de lhe oferecer conforto ou representar cuidados. Ele é filho dedicado à sua mãe doente Penny (Frances Conroy), que o encoraja a se ver como uma luz alegre no mundo, trazendo risadas para as pessoas. O problema é que ele não é particularmente engraçado. Ele é dolorosamente desajeitado, dono de um tipo de incompetência social estarrecedora que as pessoas evitam em público porque seu comportamento errático parece que pode se tornar perigoso – ou pelo menos desconfortável. É fácil para os espectadores sentirem empatia pelo desejo de ser amado, sem necessariamente amá-lo. Quando ele diz que se sente invisível, fica claro o motivo: ele é o tipo de pessoa que as pessoas desviam o olhar na rua, por apatia ou desconforto. Essa tensão entre simpatia e repulsa é uma das coisas mais honestas do Coringa, que geralmente se esforça com empenho para tornar o mundo horrível. Durante grande parte de seu tempo de execução, é um filme conscientemente feio, visual e emocional. Arthur começa com quase nada e perde tudo de forma visceral. A direção de fotografia é também outro grande e feliz trunfo do longa. Não há hesitação em tornar Coringa um filme de aparência doentia, suja e mal iluminada aos moldes de David Fincher, especialmente na casa esquálida de Arthur. Tudo sobre a narrativa foi projetado para ser opressivo e levar o público ao ponto de vista de Fleck como a principal vítima de toda essa opressão. É hipnótico o quão horrível a existência de Arthur é, assim como o desempenho de Phoenix, enquanto ele passa de uma esperança frágil para atos de destruição cada vez maiores e confiantes. Seu atos não já não medem mais consequências. Ele passa de vítima a algoz. Do pior tipo de carrasco. Não é mais sobre como ou se as outras pessoas o vêem. Nunca foi sobre se seu manifesto, sua carta ao mundo em letras garrafais, faz algum sentido. Ele já não se preocupa mais em ser coerente. A coerência mantinha sua humanidade.

Ninguém mais é civilizado

A parte importante da história de Arthur, e consequentemente a causa de tanta preocupação com Coringa, é que, quando ele abraça seus impulsos mais destrutivos, de repente ele passa a receber elogios e atenção que ele tanto deseja. Como Taxi Driver de Martin Scorsese, que Phillips emula e faz referências abertamente, Coringa entende a raiva desmedida em frente a um igualmente louco. A linha tênue entre Scorsese, Philips, DeNiro – que também participa do longa em referência ao Rei da Comédia, outro clássico de Scorsese – e Phoenix é a completa noção de que Travis é um mentiroso, ao ponto de fingir ser veterano do Vietnã. Nada em Taxi Driver inspira empatia. Travis é dono de uma raiva desmedida e não justificada, um asco que faz com que ele se desassocie de seu próprio mundo, o que não acontece com Arthur Fleck em Coringa, que é sim capaz de inspirar certa empatia. O que abre espaço para as dualidades. Para os espectadores que já não estão inclinados a ver a humanidade como uma fossa fervente podem não ter ressonância com esse nível de cinismo. Mas para os espectadores que se sentem tão maltratados e ignorados quanto Arthur Fleck, ou até mesmo aqueles que guardam ressentimentos menores e mais racionais sobre a sociedade, Coringa é uma provocação e promessa deliberada e bem ajustada. Mesmo que não seja perfeita, e perigosa quando se tratada com extremos.

Coringa (2019) é a homenagem a todas as versões

Phillips deixou claro que ele não acredita que o Coringa seja tão maniqueísta quanto um filme de quadrinhos. Pelo contrário, Coringa faz provocações reais a respeito de problemas reais e puslantes como instabilidade mental e políticas armamentistas, sobre a falha dos serviços sociais com quem mais precisa deles, sobre os ricos satisfeitos e os pobres enraivecidos, e sobre pessoas que gritam tão alto que não se pode ouvir os próprios pensamentos. E responde a questão do início: sim, de fato, tudo está ficando mais louco. Inclusive, estes são pontos interessantes de Coringa: criar inquietação. Levantar questionamentos doloridos demais para serem ditos em voz alta. Para muitos que assistirem, reforçar um lado humano, e, em determinada cena do filme, um tanto quanto heroico, pode soar como uma crítica direta ao poder que a sociedade concede a certas figuras, sem ter real dimensão da influência e gravidade que isso carrega. Já para outros, pode ser uma inversão de valores deveras tentadora àqueles que sempre estão a procura de uma desculpa plausível para as próprias crueldades. Não se confunda, em momento algum do longa parece se ter a intenção do filme de cravar uma interpretação, logo, a visão de seu autor. Opta por deixar nas mãos de quem o assiste decidir como absorvê-lo. Contudo, uma coisa é certa: Coringa é um filme difícil. É cruel, é incômodo e sua chama está em justamente confundir tantos sentimentos enquanto vemos uma criatura esguia e imprevisível gargalhando na tela. Existe, além de tudo uma leve suspeita de que por trás de tudo isso, Coringa é na verdade o mesmo palhaço psicopata de sempre. Isso mesmo, aquele bandido maníaco inaugurado por Jack Nicholson, o gênio do crime eternizado por Heath Ledger, o gangster desmedido interpretado por Jared Leto e até mesmo o constantemente cruel e implacável psicopata dublado por Mark Hammil. Phoenix entra no hall da fama como o quebrado Arthur Fleck e é aí que mora o pulo do gato. O filme quer que a gente pense nele como uma profunda declaração sobre todo um cenário atual de um mundo em espiral ao inferno de proporções bíblicas. Nenhum prêmio de cinema de arte sério laureado por uma instituição séria pode apagar a noção de que, no final das contas, quanto mais se tenta levar tudo a ferro e fogo, no final de tudo o que sobra é a implacável sensação de que a piada é você mesmo. Não seria esse o grande propósito do personagem nos quadrinhos? Ha! Ha! Ha!

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